A Assembleia Mundial da Saúde em tempos de emergência

Reunião da OMS foi marcada por tensões e frustrações. Inclusão da Palestina e resolução do Brasil sobre mudanças climáticas foram alguns dos avanços – mas fracassos do Acordo das Pandemias e de pauta de gênero deram tom do evento

Foto: OMS
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Jane Galvão, da ABIA, para a coluna Saúde não é mercadoria

Neste comentário, destaco alguns dos tópicos que marcaram a 77a Assembleia Mundial da Saúde (AMS) — que aconteceu de 27 de maio a 1 de junho de 2024, em Genebra, Suíça e teve como tema “Todos pela Saúde, Saúde para Todos” (All for Health, Health for All).

A AMS é o órgão de decisão da Organização Mundial da Saúde (OMS) e acontece uma vez por ano, em Genebra. Os participantes incluem delegações dos Estados-Membros da OMS — mas também partes interessadas, como agências da ONU, organizações da sociedade civil (OSCs), especialistas em saúde pública, acadêmicos, fundações, doadores e o setor privado —, e se concentram em uma agenda preparada pelo Conselho Executivo da OMS, que é composto por 34 membros eleitos para mandatos de três anos. As principais funções do Conselho são implementar as decisões e políticas da AMS, e aconselhar e facilitar seu trabalho. 

As principais funções da AMS são determinar as políticas da Organização, nomear o Diretor-Geral, supervisionar as políticas financeiras e revisar e aprovar o orçamento do programa proposto.

A 77ª AMS foi marcada por momentos que classifico em quatro categorias: tensão, esperança, frustração e possibilidades. A seguir, destaco esses momentos ilustrando com itens da agenda, como as mudanças no Regulamento Sanitário Internacional, a inclusão do Estado da Palestina na Assembleia e o fracasso do Acordo das Pandemias – além da resolução proposta pelo Brasil sobre mudanças climáticas e saúde.

Tensões afloradas

Alguns dos momentos mais tensos aconteceram quando as guerras entre Israel e Hamas e Rússia e Ucrânia foram mencionadas ou por conta de itens incluídos na agenda ou por Estados-Membros que, em suas intervenções expressaram, veementemente, suas opiniões. Como exemplo, cito o desacordo, demonstrado por vários Estados-Membros, para a inclusão de Israel entre os 12 países eleitos para fazer parte do Conselho Executivo da OMS.

Esperança nas mudanças no RSI

A agenda da Assembleia cobriu uma multiplicidade de tópicos, mas certamente um dos mais esperados era o resultado do Grupo de Trabalho sobre Emendas ao Regulamento Sanitário Internacional (Working Group on Amendments to the International Health Regulations/WGIHR), que visava alterar o Regulamento Sanitário Internacional (International Health Regulations/IHR)

O IHR — um documento legally binding (juridicamente vinculante) —, desde que foi adotado na 22ª AMS (1969), passou por várias revisões, a última em 2005. Ele oferece um marco legal que define os direitos e obrigações dos países para lidar com eventos e emergências de saúde pública. As alterações propostas estão relacionadas, sobretudo, aos desafios que os países enfrentaram durante a pandemia de COVID-19.

A primeira reunião do Grupo de Trabalho aconteceu em novembro de 2022, mas discordâncias sobre determinados pontos (especialmente definições) dificultaram a finalização do documento antes do início da Assembleia. Com as emendas propostas, ele foi finalizado e adotado no último dia da 77ª AMS — 1º de junho, Resolução WHA77.17 — em um desdobramento considerado histórico pela OMS: “O pacote de emendas fortalecerá a preparação, a vigilância e as respostas globais a emergências de saúde pública, incluindo pandemias”, disse a agência.

Frustrações com o Acordo das Pandemias

Idealmente, as emendas ao IHR seriam aprovadas juntamente com outro documento, o acordo de prevenção, preparação e resposta à pandemias — provavelmente uma das mais esperadas discussões da 77ª AMS — mas, um pouco como esperado, a deliberação sobre o acordo foi prorrogada (Decisão WHA77.20).

Leia Acordo das Pandemias: um fracasso esperado, uma reportagem de Outra Saúde.

Em 2021, em meio à devastação causada pela pandemia de COVID-19 — e semanas antes da 74ª AMS — a ideia de um tratado sobre pandemias começou a ser discutida. As conversas apontaram para a necessidade da comunidade global trabalhar em conjunto para desenvolver um tratado internacional sobre preparação e resposta a pandemias para uma arquitetura de saúde global mais robusta. 

O tratado foi mencionado por líderes mundiais na abertura da 74ª AMS, em maio de 2021, e foi proposto, e aceito, que uma sessão especial da WHA ocorreria em novembro de 2021 para discutir os benefícios de desenvolver um acordo ou outro instrumento internacional sobre preparação e resposta a pandemias.

Como resultado da sessão especial da AMS (29 de novembro-1 de dezembro de 2021), foi criado um Órgão de Negociação Intergovernamental (Intergovernamental Negotiating Body/INB) “para redigir e negociar uma convenção, acordo ou outro instrumento internacional ao abrigo da Constituição da Organização Mundial de Saúde para reforçar a prevenção, preparação e resposta a pandemias”.

A decisão foi por um processo a ser liderado pelos Estados-Membros, facilitado pelos co-presidentes e vice-presidentes do INB (que representam as seis regiões da OMS), e apoiado pelo Secretariado, composto por funcionários da sede da OMS. O método de trabalho do INB é similar ao do Grupo de trabalho sobre Emendas ao Regulamento Sanitário Internacional.

Contudo, o caminho para a elaboração do acordo sobre pandemias tem sido acidentado, sendo inclusive marcado pela desinformação. Este último ponto foi enfatizado pelo Diretor-Geral da OMS, Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, na 154ª reunião do Conselho Executivo da OMS, em janeiro de 2024. Em  seu discurso de abertura, ele comentou que a desinformação está impulsionando a noção de que, ao assinar o acordo sobre a pandemia, os países cederão sua soberania e darão ao secretariado da OMS o poder de impor lockdowns ou mandatos de vacinas aos países. 

Em seu discurso, Tedros enfatizou a importância de combater notícias falsas, mentiras e teorias da conspiração: “Não podemos permitir que este acordo histórico, este marco na saúde global, seja sabotado por aqueles que espalham mentiras, deliberada ou inconscientemente”.

As campanhas para desacreditar o acordo não começaram agora. Alguns esforços datam de 2022, com publicações erroneamente afirmando que os países estavam cedendo soberania à OMS. Elon Musk — dono do X, anteriormente conhecido como Twitter — em um post de março de 2023, concordou com essa afirmação, sendo rebatido por Dr. Tedros. Alguns meses depois, Dr. Tedros comentou sobre como a desinformação que minou a resposta global à pandemia de COVID-19 estaria minando os esforços para um acordo sobre a pandemia. 

Ele compara com o que aconteceu quando a indústria do tabaco tentou minar as negociações do WHO Framework Convention on Tobacco (Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco e de seus Protocolos). Esse foi o primeiro tratado internacional de saúde da OMS, adotado pela 56ª AMS, em Maio de 2003 (resolução WHA56.1). Segundo o diretor-geral da OMS, a mesma coisa está acontecendo agora quando grupos afirmam que o acordo sobre pandemias é uma tomada de poder pela OMS e que impedirá a inovação e a pesquisa. Para Dr. Tedros, o “acordo visa abordar a falta de solidariedade e equidade que prejudicou a resposta global à COVID-19”.

Mas a desinformação e  as teorias da conspiração não são os únicos problemas enfrentados para a elaboração do acordo que também sofreu com a dificuldade de participação da sociedade civil nas negociações, assim como análises desfavoráveis às versões do documento divulgadas. Apesar de alguns avanços, as indicações são de um documento que ainda precisa ser aprimorado para incluir, com mais clareza, elementos como propriedade intelectual e equidade, entre outras questões. No entanto, ao contrário das emendas ao IHR que foram aprovadas, o documento sobre o tratado de pandemias não foi votado pela Assembleia. Como mencionamos, a decisão foi de prorrogar o mandato do INB para concluir seus trabalhos de negociação de um Acordo de Pandemias para ser apresentado na próxima AMS, em 2025, ou antes, em uma sessão especial da AMS em 2024.

Apesar da frustração, esse desfecho era um pouco esperado, como já indicava um artigo publicado dias antes do início da 77ª AMS: “Se nenhum acordo for alcançado nas próximas duas semanas, outras opções incluem uma AMS estendida até junho, uma Sessão Especial da AMS em novembro ou dezembro ou — a opção menos popular — adiar o prazo para a próxima AMS.”

Com relação à prorrogação das negociações, algumas semanas antes do início da Assembleia, mais de 160 OSCs assinaram uma carta aberta, endereçada ao Dr. Tedros, pedindo que não pressionasse pela adoção do tratado. Outras organizações, como a Public Services International — uma Federação Sindical Global que congrega mais de 700 sindicatos que representam 30 milhões de trabalhadores em 154 países — em colaboração com OSCs (que incluiu a ABIA), emitiram um comunicado solicitando aos “Estados-membros que não sucumbam à pressão e ao risco de adotar um Instrumento de Pandemia que não tem obrigações legais para garantir um fornecimento sustentável e previsível de produtos, tecnologia e financiamento”. Um tópico para acompanhar com atenção é como os grupos que protestaram contra a adoção do acordo usando desinformação se reorganizarão para continuar suas campanhas contra o tratado de pandemias.

Novas possibilidades se abrem

Com a aprovação de alguns documentos, a 77ª AMS apontou para possibilidades futuras. Aqui destaco dois documentos: O Décimo-quarto Programa de Trabalho, 2025–2028 (resolução WHA77.1); e a resolução sobre mudanças climáticas e saúde (WHA77.114).

O programa de trabalho da OMS estabelece uma agenda para a saúde global e identifica as prioridades e a direção estratégica da OMS. Também fornece uma estrutura para a alocação de recursos e a tomada de decisões. O programa de trabalho anterior ficou conhecido pelas metas de três bilhões para garantir, até 2023: Mais um bilhão de pessoas sendo beneficiadas pela cobertura universal de saúde; Mais um bilhão de pessoas protegidas de emergências de saúde; Mais um bilhão de pessoas desfrutando de melhor saúde e bem-estar. 

Contudo, o Results Report, publicado alguns dias antes do início da 77ª AMS, apontou que, apesar dos avanços, o mundo não irá alcançar — como reconhecido pela própria OMS — a maioria das metas de três bilhões e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável relacionados à saúde. Tal resultado era esperado, pois em um relatório publicado em 2023 pela OMS e o Banco Mundial, se relata que cerca de metade da população mundial — 4,5 bilhões de pessoas — não está coberta por serviços essenciais de saúde.

O Programa de Trabalho 2025-2028 tem, entre as prioridades refletidas em seus objetivos estratégicos, uma ênfase na resiliência dos sistemas de saúde, equidade e acesso à saúde global, mudanças climáticas e prevenção de doenças. 

Para financiar o novo Programa de Trabalho, a OMS lançou um plano de investimento (Investment Case 2025-2028): o orçamento necessário está estimado em 11,1 bilhões de dólares, sendo que a OMS espera que a contribuição dos países será em torno de 4 bilhões de dólares. Uma lacuna de financiamento de 7,1 bilhões de dólares segue no ar. 

A OMS, em colaboração com os Estados-Membros, como o Brasil, está buscando completar o financiamento necessário com rodadas de investimento. Por exemplo, durante a reunião do G20 em 2024 — o Brasil é o atual presidente do grupo — está prevista uma rodada de investimento. O calendário de reuniões do G20 é intenso. Várias reuniões já estão em andamento, incluindo na área da saúde. A Cúpula de Líderes do G20 está agendada para 18-19 de novembro, no Rio de Janeiro.  

Quanto à resolução sobre mudanças climáticas e saúde (WHA 77.14)— que teve o Brasil como um dos países proponentes — a resolução pode ser vista como um desdobramento do crescente reconhecimento, pela OMS, da ligação entre clima e saúde, o que levou o Diretor-Geral da OMS a nomear Vanessa Kerry, em 2023, como a primeira enviada especial para mudanças climáticas. Também no ano passado, a OMS publicou o World Health Statistics 2023, o primeiro relatório a descrever os impactos das mudanças climática na saúde em um mundo marcado por catástrofes naturais e que está cada vez mais quente.

Retrocessos e avanços se misturam

A 77ª AMS teve momentos inesperados — como a resolução sobre a participação da Palestina na AMS, mas sem direito a voto (WHA77.15)— mas também retrocessos. Quanto a este último ponto, apesar da resolução ter sido adotada, vários Estados-Membros demonstraram oposição ao uso da terminologia relacionada a “gênero” presente em uma resolução (WHA77.8). 

Nesse sentido, é bom lembrar que a Estratégia Global sobre HIV, Hepatite B e Infecções Sexualmente Transmissíveis 2022-2030, da OMS, foi adotada em 2022 na 75ª AMS (resolução WHA75.20), com 61 votos a favor, 2 contra, mas também com 30 abstenções e 90 delegações que não votaram.  A aprovação da estratégia aconteceu após objeções de vários países, liderados pela Arábia Saudita, a termos usados na estratégia e no glossário sobre saúde sexual e populações-alvo para o tratamento do HIV. 

Em um compromisso que foi aprovado antes da votação final, a delegação do México se ofereceu para remover o glossário. No entanto, a concessão mediada pelo México não foi longe o suficiente para Estados-Membros como Arábia Saudita, Egito, Nigéria, dentre outros. Além de excluir o glossário, eles exigiram a remoção de termos como “direitos sexuais”, assim como a referência a uma Orientação Técnica Internacional sobre Educação em Sexualidade, que faz uso da mesma terminologia. 

Logo após a Assembleia, analisando a questão na 151ª sessão do Conselho Executivo alguns Estados-Membros expressaram preocupação sobre o fracasso da AMS em encontrar consenso sobre uma estratégia de saúde tão emblemática e o “perigoso precedente” que a votação estabeleceu. 

Demonstrando como questões relacionadas a gênero ainda dividem os Estados-Membros da OMS, na 155ª reunião do Conselho Executivo (3-4 junho de 2024) — realizada após o término da 77ª AMS —, a proposta do Secretariado da OMS de reconhecer a organização norte-americana Center for Reproductive Rights como ator não-estatal em relações oficiais com a OMS, foi motivo de um intenso debate no Conselho Executivo. Na votação final, o Center for Reproductive Rights foi reconhecido mas, como noticiado, o Egito, apoiado por uma coalizão que inclui nações islâmicas e do Oriente Médio e outros países, prometeu “escalar” a questão levando para discussão a AMS. 

Mudanças climáticas e saúde, um novo programa de trabalho e um tratado sobre pandemias para ser finalizado são alguns dos resultados da 77ª AMS que visam promover a saúde em um contexto marcado por conflitos armados e crises humanitárias que têm, como consequência, um número crescente de emergências em saúde. O que nos leva a pensar que estamos vivendo uma realidade sintetizada no título de um filme: tudo em todo lugar ao mesmo tempo.

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